Sonhos de uma Noite de Inverno:
A noite estava escura. Um vulto avermelhado passou em
frente à lamparina a óleo que iluminava o portão de um enorme casarão. Aquilo
era tudo o que se podia se deslumbrar no que parecia ser uma calma estrada. Um
dos guardas do portão de ferro entrou, mas somente chegou a tempo de ver as
ultimas dobras de uma capa preta sumindo pelo arco de mármore à sua frente. O
homem apertou mais forte o cabo da arcabuz. Temeroso, aproximou-se da porta do
Arsenal, local de onde vinha um ruído estranho de metais sendo jogados contra
pedra. Enchendo-se de coragem, o jovem guarda chutou a porta e atirou com a
arcabuz duas vezes em direção ao teto… E se arrependeu logo em seguida. Olhando
para ele do outro lado da sala, severamente, estava uma mulher feita de luz. Ou
pelo menos era o que parecia: Ela flutuava nua, exceto por um lenço vermelho em
volta de seu pescoço, pelo menos a dois palmos do chão. De seu corpo emanava
uma brilhante luz rosada e grossa como névoa. Nove caudas vermelhas eram
visíveis saindo do fim de suas costas.
- Raposa de nove caudas! – Disse ele em japonês. –
Perdão! E-eu não sabia… – Ele se prostrou diante dela e jogou sua arma aos pés
da mulher.
- Idiota! – Ela respondeu, raivosa, na mesma língua. -
Ousa atacar uma serva de Inari? – Ela parou de flutuar e caminhou em direção a
ele. – Onde posso encontrar seu templo imundo? – Ela chutou-o no peito e ele se
estatelou na parede.
- Porque uma serva de Inari quereria saber iss… – Ele foi
cortado por um chute em seu rosto.
- Onde está sua igreja? – Gritou ela, irada.
- Duas casas à frente, na estrada! – Disse ele, no mais
fluente português.
- Fala a língua invasora, Baka? – Disse em tom maldoso.
Então, com um estalar de dedos, a ilusão que aprontara se desfez e a névoa
voltou a ser manto e capa negra, e as nove caudas a ser uma, escondida pela
capa. – Inari adorará te conhecer… – Ela passou, como se acariciasse, o dedo
pelo pescoço do homem, que sorriu ingenuamente. Quando ela finalmente saiu pela
porta com algumas armas que roubou, o veneno paralisante e mortal que ela
injetara no homem já chegara ao coração. De manhã, quando o encontrassem, ele
ainda continuaria a sorrir.
***
O ar fresco da noite lhe fustigou o rosto. Depois de sair
do arsenal, fora muito fácil passar pelo outro guarda. Apenas ilusionara-o com
a imagem do morto e dissera que iria patrulhar as redondezas, pois um ladrão
fugira carregando algumas coisas do arsenal.
Aproximou-se, ligeira, da frente do seu destino: Alta e
bela erguia-se a suntuosa catedral barroca, silenciosa sobre a colina. Suas
torrinhas arredondadas lembravam guaritas, como se anjos protegessem aquele
lindo lugar, seus topos pontiagudos furavam a névoa modorrenta da noite fria.
Sua fachada principal, assim como o corpo da igreja, era curvilínea. As escadas
eram de pedra branca, manchada pelo uso, mas isso não a deixava menos bela.
Acima da porta principal, anjos surgem da parede e estes seres de mármores,
belos como nenhum mortal poderia ser, seguravam um pergaminho, feito em pedra
mais clara, por sobre o portal. No pergaminho podiam ser lidas, sem nenhum
esforço, as belas letras cursivas desenhadas a fogo: “Qui credit in eum non
pereat sed habeat vitam aeternam”, do latim “Aquele que acredita em mim não
perecerá, mas terá a vida eterna”. Por dentro, ela era quase totalmente
folheada a ouro e, cada parede lateral carregava sete quadros, mostrando o
caminho de Cristo até Gólgota. Altares laterais repletos dos mais variados e
belos entalhes exaltavam os santos. A pintura da ascensão de uma Nossa Senhora,
envolta por centenas de anjos, enfeitava o teto.
Ela, sem nem mesmo reparar em nada daquilo, dirigiu-se
para uma pequena bacia, ao lado do portal, cheia de água benta. Desembainhou a
faca que roubara do Arsenal e olhou-a por uns momentos, à luz da lua. Era uma
Wakizashi, na verdade. Uma espada curta, antes usada por samurais. Sua
empunhadura era simples: feita de couro com um pequeno rubi incrustado. A luz
batia-lhe com ternura, acariciando a superfície lisa como gelo. Mas, por trás
disso, como um fantasma escarlate do passado sombrio, percebia-se pequenas
manchas de sangue seco. Sem mais hesitação, ele mergulhou a lâmina na água
abençoada. Por uma pulsação, sujeira e sangue saíram do metal e ficaram na
superfície da água, mas no segundo seguinte já não mais existiam, manchas
impuras por sobre a limpeza da água. Quando retirada, a lâmina brilhava ainda
mais, como se nunca tivesse sido usada. A mulher sorriu desdenhosamente e
molhou também as pontas das flechas que roubara. Precisou caminhar mais algumas
dezenas de metros para chegar à beira da floresta, seu destino. Seu objetivo
era arranjar algum animal para sacrificar.
A luz do sol que já raiava enchia os caminhos de luz
avermelhada quando passava pelas folhas das árvores, velhas e nodosas que
traziam consigo as marcas dos muitos anos desde que haviam sido plantadas, como
jardim, a volta da casa do oleiro Kobayashi. Uma sensação de extrema felicidade
invadiu-a quando começou a caminhar pelas trilhas apagadas e cheias de mato.
Não precisaria de armas, de roupas, de nada que os invasores pudessem usar para
andar por aquelas trilhas, por entre aquelas árvores, velhas amigas de aventura
e antigos esconderijos dos caçadores e das armas que traziam consigo.
Valer-se-ia de suas presas e de sua astúcia. Era apenas a decisão de pular para
o chão, já metamorfoseada, livre de tudo e matar. Estraçalhar e matar, até que
o sangue lhe enchesse a boca e sua presa não mais pudesse respirar, seus olhos
fitassem o vazio inutilmente, sem nada vislumbrar. Mas o ritual tinha que
proceder conforme o planejado. Pediu permissão para um bordo japonês para
prender a faca em sua casca. Essa era uma habilidade comum de sua raça. Falar
com a natureza: animais e plantas, sem exceção, entendiam-nos e eram
entendidos. Ouviu-se um rumor carregado pela brisa morna da manhã que já surgia
e ela compreendeu-o. Sentiu-se feliz de se livrar do peso que aquela faca
cerimonial lhe impunha. E não somente no peso literal que ela estava pensando.
Sem demora, fincou-a. Deixou ali também suas botas de sola grossa e bico de
aço. Caminhou sorrateira, agachada, por entre as plantas rasteiras e sentiu as
folhas vermelho alaranjadas do bordo sob seus pés. Sem fazer nenhum barulho ela
andou pelas redondezas, o arco preparado. Não teve, porém, que andar muito para
encontrar sua oferenda: Alguns metros adiante, na trilha estreita, um filhote
de antílope brincava por entre as raízes das árvores. Ela colocou uma flecha no
cordel do arco e mirou-a cuidadosamente no baixo ventre do animal. A flecha
atravessou-o sem mata-lo. Ele esperneou. Se continuasse assim, logo a mãe dele
apareceria. A caçadora andou três ou quatro metros até sua faca e arrancou-a,
sussurrando para a casca algum pedido de desculpas, na língua das árvores.
Numa sátira ao Deus cristão, gritou:
- Ele providenciará! – Cortou a garganta do animal. Um
segundo depois, uma pequena esfera brilhante saiu da boca dele. Começou a se
dispersar, mas parecia estar sendo puxada para a faca. Um trovão ressoou. O
vento parou de soprar. A volta dela, tudo pareceu ficar em preto e branco. A
caçadora virou a cabeça rapidamente para trás. Um vulto se aproximava. Tinha os
cabelos cor-de-chocolate, olhos azuis e pele azeitonada. Vestia-se com roupas
escuras, que pareciam se mesclar com as trevas que se aninhavam debaixo das
árvores. Trazia um cetro prateado extremamente detalhado, na mão esquerda:
tinha a forma de galhos espinhosos enrolados e, no topo, havia uma rosa
vermelho-sangue, aberta em todo o seu esplendor. Em sua mão direita carregava
uma foice enorme e curva, sua lâmina estava cravada sobre um cabo de quase dois
metros, extremamente escuro. Em seu peito brilhava um brasão: uma caveira
prateada com uma rosa vermelha na boca. Ele se aproximou dela, movendo-se,
aparentemente, sem tocar o chão. E sorriu. Um escárnio cruel. Ela se ajoelhou.
- Eu ofereço meus serviços. – Disse ela, formal e
solenemente.
- Prove. – Ele ordenou. Pegou o cetro por baixo e colocou
os olhos de rubi da caveira bem em frente aos olhos da mulher. Ela olhou-os,
soltou um suspiro e caiu.